Antes mais comuns em homens com mais de 50 anos, fumantes e consumidores contumazes de bebidas alcoólicas, os tumores de língua, céu da boca, faringe, laringe e amígdala, genericamente chamados de tumores de cabeça e pescoço, estão aparecendo em pessoas mais jovens, entre 30 e 45 anos, que não fumam e não bebem ou bebem pouco. Médicos e pesquisadores concluíram que o papilomavírus humano, o HPV, microrganismo geralmente encontrado em qualquer pessoa em algum momento da vida, deve ser o causador de infecções que facilitam a formação desses tumores. Se há 10 anos o HPV respondia por 25% dos casos de câncer de amígdala, um dos mais frequentes nessa região, hoje está associado a 80% desses tumores, de acordo com estudos recentes realizados por especialistas do A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo, e reiterados por outros grupos de pesquisa.
Antes desses trabalhos, o HPV era mais conhecido como o principal agente causador de verrugas genitais e de câncer de colo do útero – o terceiro tipo de tumor mais comum em mulheres, depois do de mama e cólon e reto – e, raramente, de tumores de pênis e ânus, este último mais frequente em homossexuais e bissexuais. O fato de agora estar sendo associado a tumores na região da cabeça e do pescoço se deve possivelmente ao mesmo motivo: práticas sexuais, nesses casos principalmente sexo oral, sem proteção e com muitos parceiros. Mesmo o uso de preservativo pode não ser suficiente para evitar a contaminação, alertam os especialistas. O HPV é transmitido pelo contato direto com a pele infectada e, muitas vezes, pode se esconder em áreas não cobertas pela camisinha, como na bolsa escrotal. “A falta de higiene íntima e bucal aumenta o risco de transmissão do vírus e de desenvolvimento de tumores, sobretudo os de amígdala, orofaringe (parte da garganta logo atrás da boca) e língua”, diz o cirurgião Luiz Paulo Kowalski, diretor do Núcleo de Cabeça e Pescoço do A.C. Camargo.
Os tumores de cabeça e pescoço são o sexto grupo de câncer mais comum no mundo, originando cerca de 650 mil novos casos todos os anos. No Brasil, 32.130 pessoas foram diagnosticadas com algum desses tipos de câncer em 2014, segundo o Instituto Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro. O câncer nessas regiões do corpo costuma ser devastador porque implica transformações em uma área muito visível, o rosto, diretamente associado à identidade de cada pessoa. Muitas vezes, como parte do tratamento, é preciso remover a língua e outras partes da boca e da garganta tomadas pelos tumores. Como consequência da cirurgia, as pessoas costumam ter dificuldade para comer, falar e respirar.
Os primeiros sintomas que indicam a formação de tumores são pequenas feridas que sangram facilmente e crescem até chegar à musculatura e aos nervos, então causando dor. “Cerca de 80% das pessoas diagnosticadas com câncer de cabeça e pescoço em São Paulo têm tumores em estágio avançado porque não deram atenção aos primeiros sintomas, que são indolores”, diz Kowalski. Segundo ele, a dificuldade para mastigar e engolir, movimentar a língua ou a mandíbula são sintomas tardios. Nesses casos, as consequências são mais dramáticas: “Às vezes é preciso remover metade ou até mesmo toda a língua ou as cordas vocais”.
Muitos pacientes em tratamento entram em depressão. “Alguns não veem mais sentido na vida e precisam de acompanhamento psicológico”, diz a psicóloga Mariana Meloni, que há quatro anos coordena reuniões com pessoas com tumores de cabeça e pescoço prestes a serem operadas no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp). “O fato de terem de abrir mão de antigos hábitos, frequentemente associados à bebida e ao cigarro, e de não poderem voltar a trabalhar ou até mesmo se alimentar sozinhas faz com que se sintam como se tivessem perdido o controle de suas vidas.”
Além da necessidade de redesenhar a vida, emerge o sentimento de culpa, como descreveu a escritora norte-americana Susan Sontag no ensaio Doença como metáfora (1978), antes de ela própria morrer de câncer, em 2004, aos 71 anos: “O mito que ronda o câncer sugere que a pessoa é responsável por sua própria doença, sendo o câncer, então, visto como sinônimo de fracasso”. E mais adiante: “Tratar o câncer como um inimigo demoníaco faz dele não só uma doença letal, mas uma doença vergonhosa”.
Não há estimativas concretas sobre o número de casos de tumores de cabeça e pescoço causados pelo HPV no país. Nos Estados Unidos, estima-se que 42.440 casos de tumores desse tipo tenham sido registrados em 2014, sendo 14.410 apenas de orofaringe, dos quais, calcula-se, 9 mil foram causados pelo vírus em homens e 2 mil em mulheres jovens, de acordo com a American Cancer Society. “Esses dados reforçam a hipótese de que o número de casos de tumores causados pelo HPV nessa parte do corpo deve superar os provocados pelo álcool e pelo cigarro até 2020 nos Estados Unidos”, diz Kowalski. “O Brasil provavelmente seguirá a mesma tendência.”
Os primeiros sinais de que pessoas mais jovens, não fumantes e de boa saúde – alguns atletas, inclusive – estavam tendo mais tumores de cabeça e pescoço foram percebidos nos Estados Unidos a partir da década de 2000, mudando o perfil epidemiológico da década anterior, associado a pessoas com mais de 50 anos que bebiam e fumavam assiduamente. Kowalski detectou essas mudanças no Brasil em 2011, quando, com sua equipe, comparou as análises moleculares de 114 amostras de tumores de boca de dois grupos de pessoas tratadas no A.C. Camargo: um formado por indivíduos com idade entre 30 e 45 anos, que não fumavam nem bebiam, e outro com pessoas com mais de 50 anos que fumavam e bebiam antes de terem a doença. Kowalski encontrou trechos do DNA do HPV em 68,2% das 47 amostras do grupo mais jovem e em 19,2% das 67 amostras do grupo que fumava e bebia, conforme descreveu em um artigo publicado em 2012 no International Journal of Cancer.
Álcool, cigarro e HPV
Os médicos do A.C. Camargo observaram que as pessoas mais jovens, cujo câncer estava associado ao HPV, respondiam melhor ao tratamento e apresentavam melhores taxas de sobrevida do que as com mais idade, cujos tumores eram em geral mais agressivos e resistentes. Segundo Kowalski, essas diferenças poderiam resultar do fato de os pacientes mais jovens serem mais saudáveis por não beberem nem fumarem. “Pessoas com tumores causados pelo álcool e pelo tabaco, além de terem mais idade, costumam sofrer de problemas pulmonares e cardiovasculares, e o diagnóstico geralmente é feito quando os tumores estão em um estágio mais avançado, o que dificulta o tratamento”, diz Kowalski. Em julho, ele presidirá a quinta edição do Congresso Mundial da Academia Internacional de Câncer Oral, realizado pela primeira vez no Brasil, que reunirá profissionais de diversas áreas para discutir estratégias que estimulem a prevenção e o diagnóstico precoce desses tumores.
Mesmo que existam sinais de que os tumores de cabeça e pescoço causados pelo HPV se comportem de modo diferente, eles são combatidos do mesmo modo, com químio e radioterapia e cirurgia, muitas vezes com sucesso, como no caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acometido por um câncer na laringe, sem vinculação ao HPV, em 2011. Em outros casos, o tratamento pode não ser suficiente para conter a doença. Um dos criadores da psicanálise, Sigmund Freud morreu em 1939 em decorrência de um câncer de boca, contra o qual lutou por 16 anos, tendo substituído quase toda a mandíbula por próteses. Freud fumou até morrer, aos 83 anos.
Rossana López, pesquisadora do Icesp, encontrou outro indício de que o HPV pode ser a causa de tumores nessa região. Em 2011, ela avaliou a prevalência de infecções pelo vírus em 1.475 pessoas com câncer de cabeça e pescoço usando dados de dois estudos. O primeiro foi feito de 1998 a 2003 pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) em cinco cidades brasileiras, embora ela tenha usado dados apenas de Goiânia, Rio de Janeiro e São Paulo, para restringir a amostra e poder compará-la com dados do segundo estudo, realizado entre 2003 e 2010 por uma rede internacional de pesquisa, o projeto Genoma do Câncer de Cabeça e Pescoço (Gencapo), de São Paulo. Por meio de análises de amostras dos tecidos com tumores, Rossana verificou que a prevalência do HPV do tipo 16, uma das 200 variedades conhecidas, aumentou de 1% entre os casos do estudo mais antigo, do final da década de 1990, para 6,7% no mais recente, dos anos 2000. Ela também identificou anticorpos contra o HPV-16 em 55% das amostras do estudo da Iarc e em 72% das do Gencapo.
Batalha interna
As pessoas infectadas, porém, nem sempre produzem anticorpos contra o vírus, verificou Luisa Villa, coordenadora do Instituto de Ciência e Tecnologia para o Estudo das Doenças Associadas ao HPV e pesquisadora do Centro de Medicina Nuclear do Departamento de Radiologia e Oncologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), que colabora com a equipe do A.C. Camargo. Um dos estudos de seu grupo indicou que apenas 50% das mulheres e 10% dos homens infectados produziram anticorpos específicos contra o vírus. “Sete em cada 10 mulheres pode contrair o HPV em algum momento da vida”, diz José Eduardo Levi, do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da USP. “O organismo da maioria delas consegue eliminar o vírus, enquanto o dos homens, não”, explica. Por esse motivo é que as mulheres podem readquirir o vírus, mesmo depois de já tê-lo eliminado várias vezes, ao serem reinfectadas por seus parceiros. Uma estratégia adotada no Brasil para evitar o contágio e reinfecções pelo HPV-16 tem sido a vacinação de meninas a partir dos 9 anos de idade. No entanto, para o controle mais eficiente da disseminação do HPV, ressalta Villa, seria preciso levar em consideração também os homens. “Se não os incluirmos nesse processo, é possível que a mesma mulher, depois de ter eliminado o vírus, volte a se infectar.”
Em estudos realizados no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP em 2013, uma substância candidata a vacina experimental de DNA fez as células de defesa de camundongos identificar e eliminar células de tumores causados pelo HPV-16. A vacina experimental age após a infecção causada pelo vírus – diferentemente das vacinas tradicionais, exclusivamente preventivas –, ativando células (linfócitos T CD8) que identificam esses sinais e lançam proteínas tóxicas que matam as células infectadas.
A ideia de que microrganismos podem causar câncer é antiga. Em 1901, o médico francês Eugène-Louis Doyen anunciou à Academia de Medicina de Paris, França, que havia isolado o microrganismo responsável pela doença: o Micrococcus neoformans. Não demorou para se verificar que ele estava equivocado. Quase 10 anos depois, no Instituto Rockefeller, em Nova York, o virologista Francis Peyton Rous, ao transplantar o tumor de uma galinha para outra, saudável, concluiu que tumores seriam causados por um minúsculo parasita. Nesse caso, ele estava certo. Sabe-se hoje que vírus como o Epstein-Barr e bactérias como a Helicobacter pylori são responsáveis por 15% do total dos casos de câncer. No caso do HPV, calcula-se que pelo menos metade das pessoas sexualmente ativas abrigue no mínimo uma das 200 variedades conhecidas do vírus, mas isso não quer dizer que o contágio evoluirá para um câncer. Algumas variedades de HPV são inofensivas e causam apenas saliências facilmente confundidas com verrugas.
Os estudos da equipe de Levi sugerem que o HPV se aloja preferencialmente na base da língua e nas amígdalas. O vírus pode favorecer a formação de tumores ao interagir com genes das células humanas e inativar o processo de produção da proteína p53, a principal responsável pelo reparo do DNA. “Se o HPV inativa a p53, as células começam a se multiplicar descontroladamente”, diz ele. Uma estratégia para deter o vírus e a formação de células anormais seria, portanto, restaurar e fortalecer a ação da p53. Uma molécula conhecida como P-Mapa, desenvolvida pela rede de pesquisa Farmabrasilis, que conta com pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da USP e de universidades dos Estados Unidos – com apoio da FAPESP –, conseguiu restaurar a atividade da proteína p53 em ratos com câncer de bexiga urinária induzido, de acordo com um estudo publicado em 2012 na Infectious Agents and Cancer. Em testes em laboratório, a molécula mostrou-se capaz de reduzir em 95% os tumores desses animais, por meio da ativação de receptores celulares do sistema imune inato (receptores toll-like), favorecendo também a produção de um tipo de proteína que bloqueia o processo que leva à formação de vasos sanguíneos que nutrem os tumores e os ajudam a se espalhar por outros tecidos.
Um teste molecular não invasivo desenvolvido por pesquisadores e médicos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do A.C. Camargo e do Hospital do Câncer de Barretos talvez possa ajudar na detecção precoce do risco de reaparecimento de tumores de cabeça e pescoço, em pessoas que já os tiveram, antes dos primeiros sinais clínicos, ampliando a eficácia do tratamento. O teste consiste no exame molecular de células epiteliais encontradas na saliva. O DNA dessas células é extraído e se avalia se genes supressores de tumores apresentam um tipo específico de alteração, a hipermetilação. Pessoas cujos genes supressores sofreram essa alteração apresentaram um risco cinco vezes maior de reaparecimento dos tumores de cabeça e pescoço do que as pessoas cujos genes estavam inalterados. Os pesquisadores acreditam que o teste poderia ser usado também para identificar alterações genéticas prejudiciais em quem não teve a doença para saber se há risco de desenvolvê-la.
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